31 maio 2008

Arquivo morto.


Para quase todos os empregados de uma empresa pública, os dias de trabalho costumam ser, via de regra, recheados de procedimentos padronizados e burocráticos. Para cooperar, nosso gerador de políticas aleatórias tem tido surtos freqüentes de loucura e, como resultado, normas bastante questionáveis têm vindo à tona. Esta semana, por exemplo, a maquininha deve ter considerado que o estoque de papel na empresa andava muito elevado. Como solução imediata, instituiu novos formulários a serem preenchidos por todos os empregados, dando início a uma intensa campanha pró-gastança, visando desafogar as prateleiras do almoxarifado.

Caso você tenha considerado o parágrafo acima ligeiramente forçado, permita-me descrever o último formulário de RH preenchido por mim para atualização de dados pessoais, aí talvez você mude de idéia. Constituído por diversas páginas, o objetivo da coisa era colher possíveis atualizações de dados pessoais dos funcionários. Caso houvesse alterações nas informações, estas deveriam ser lançadas nos campos correspondentes, abaixo dos dados antigos que também constavam no formulário. Caso não existissem alterações, bastaria assinar cada uma das diversas folhas e devolver tudo em branco ao RH. Vejamos: continuo com o mesmo nome, minha data de nascimento tampouco sofreu alterações e, por incrível que pareça, depois de todos esses anos de serviço, o nome dos meus pais continua inalterado. Coloco a data, assino e entrego a ficha em branco (não estou brincando, a ficha possuía campos para atualizações em todos esses dados).

Mudando um pouco a abordagem, mas sem pular os muros do setor público, também merece destaque o indefectível mecanismo anticorrupção para compra de materiais. Assim, se precisamos adquirir cinco unidades de um parafuso qualquer, algo que causa um rombo de cerca R$ 0,28 aos cofres públicos, devemos antes imprimir três orçamentos e anexá-los à pasta que foi criada especialmente para a tramitação deste processo. Dali a uns dois meses e outra dúzia de papéis, se tudo sair como esperado, estaremos recebendo os tais parafusos. Logicamente, ao final do processo, teremos gasto mais dinheiro com papel e tinta para impressão de toda a documentação de aquisição do que com o produto em si, sem falar do tempo empatado brincando de despachante. Não é divertido?

Para a formalização de grandes contratos, naturalmente, o furo é mais embaixo. A quantidade de papel a ser amontoada é tamanha que faz com que muitas empresas proponentes pensem seriamente se vale mesmo a pena participar da licitação. São pastas e mais pastas quase estourando com quilos de cópias autenticadas que ninguém nunca vai pôr os olhos, com exceção, talvez, do operador da fotocopiadora e do estagiário que montou a pasta.

Existem muitos outros casos onde a “papelada pra constar” atulha estantes e alimenta traças, e a quantidade de recursos gastos somente para administrar isso tudo tende a ser muito mais do que apenas significativa. No final do dia, a bola de neve atinge proporções tão absurdas que chego a imaginar se não se gasta mais recursos para lidar com toda essa selva de papel do que com a própria atividade fim da empresa.

24 maio 2008

Os acadêmicos da terça-feira.

A noite de terça feira custa a passar. Sentados nas classes, cerca de trinta futuros engenheiros apreciam a exposição de um tema indigesto. À frente de um quadro negro tomado por cálculos, deduções, matrizes, integrais e equações diferenciais, um professor septuagenário despeja o conteúdo da sua disciplina para dezenas de expectadores entediados. E lá estou eu, fazendo parte do cenário.

Após duas horas de aula, passo a travar uma batalha ferrenha contra minhas pálpebras que cismam em fechar-se. Acompanho com certo sacrifício aquela didática toda particular, enquanto o tom de voz cadenciado e constante, juntamente com a imagem do retroprojetor, fazem eu me sentir como se estivesse dirigindo um carro em linha reta depois de ter almoçado um prato de feijoada com bacon.

Sob os olhares consternados dos pupilos, o velho mestre, após desenvolver uma equação quilométrica e cabeluda, vira-se e lança a pergunta: “Ficou perfeitamente claro? Todos entenderam?” Olhando para a platéia, aguarda os questionamentos, mas nenhum braço se levanta. Talvez ainda não tenha ocorrido a ele, mas para que algum questionamento possa surgir, naturalmente, é necessário um mínimo de compreensão do tema, pelo menos o suficiente para permitir que alguém seja capaz de formular uma pergunta.

Devido à baixa interatividade da aula, o professor inicia então uma rodada de perguntas dirigidas, onde pelo menos uns cinco felizardos têm o privilégio de expor sua ignorância ao resto da turma. Na tentativa de escapar das encaradas do mestre e da possibilidade de ser eleito para responder alguma pergunta, todos afundam os olhos nos cadernos ou desviam os olhares para o quadro negro, onde aquele monte de rabiscos teima em não fazer sentido algum.

“Joãzinho, você entendeu o que eu acabei de demonstrar?” Dispara o professor, ao que o Joãozinho resolve ser sincero, dizendo que não entendeu bulhufas do que ele vinha explicando. Verdade dita, logo surge o rebote: “Ok, e o que exatamente você não entendeu?” Pergunta o solícito professor para o ingênuo e já arrependido Joãzinho. Novamente acuado, não lhe agradando a idéia de sugerir ao homem que retome o conteúdo desde o início do capítulo 1, ele ensaia uma cara de intelectual enquanto tenta formular a resposta mais genérica de que se tem notícia. Os colegas entreolham-se e engolem o riso diante de mais uma tentativa de aplicação da velha e conhecida técnica de fuga pela tangente.

A aula segue e ninguém mais é posto em situação constrangedora. Desta forma, sem mais nenhum tipo de entretenimento, acabo sendo vencido pelo sono. Mesmo sentado no fundo, sou avistado pelo velho dos olhos de águia, que levanta o braço e pede silêncio à turma: “Não vamos atrapalhar o sono do rapaz ali no fundo”.

Engraçadinho ele. O cara sempre escolhe os piores momentos para bancar o cool.

17 maio 2008

Buscando um lugar ao sol.

Você sempre sonhou em cursar uma renomada universidade, mas a mensalidade lhe custaria o equivalente a um fusca 1979? O vestibular da universidade federal é um bicho feio que tende a fazer suas vísceras se revolverem? Seus problemas acabaram! Chegou o Enem 2008, o Exame Nacional do ensino médio, que este ano está completando uma década de vida.

O exame foi criado em 1998, com o objetivo de avaliar o desempenho dos egressos do ensino médio. Durante os primórdios do programa, no entanto, os candidatos aparentemente sentiam falta de algum estímulo que os convencesse a pagar a inscrição e perder um Domingão do Faustão para irem prestar a prova. Nas primeiras edições, portanto, o números de inscritos costumava ser bem modesto.

A cada ano, no entanto, este número ia aumentando, até que em 2004, quando o Ministério da Educação criou o Programa Universidade para Todos (ProUni) e vinculou a concessão de bolsas em universidades privadas à nota obtida no exame, o número de inscritos misteriosamente cresceu de forma exponencial. Desde então, este número vem superando com folga a marca dos três milhões.

Como acontece com absolutamente tudo nesta vida, o Enem e o ProUni conquistaram seus fãs, mas também fizeram surgir críticas. Certamente existem pontos a ponderar, mas ao que tudo indica, o programa tornou mais democrático o ingresso no ensino superior, ao permitir que muitos jovens, sem uma renda familiar que lhes garantiria o acesso a uma universidade, tenham agora mais chances de se apoiarem nos seus méritos pessoais para conseguirem a vaga.

Um bom exemplo disso seria o Zé Tonico, guri inteligente e esforçado que era sempre visto por aí com seus tênis Conga de segunda mão e suas roupas compradas por sua mãe em “promoções de balaio” no Mercado Público da cidade. Seu pai saía todos os dias bem cedo, em busca de uns bicos que garantiriam a comida na mesa da família de oito filhos. Obviamente, este panorama não muito colorido colocara Zé Tonico à mercê do ensino público. Estudava na Escola Municipal “Professorinha Carmélia Viana Lurdes Conceição dos Passos”, que apesar de não ser nenhuma Harvard, pelo menos dispunha de uma biblioteca, mirradinha que só vendo, mas de onde o Zé Tonico retirava livros surrados que lhe serviam de lazer durante os finais de semana chuvosos.

Este mesmo Zé Tonico, orientado poucos anos atrás por algum benfeitor, acabou se inscrevendo para a tal da prova do Enem, onde, por sinal, se deu muito bem. A boa pontuação colocou o rapaz na cara do gol, em uma jogada que iria projetá-lo para realizações com as quais vinha sonhando desde a adolescência. Tendo conquistado uma bolsa integral de estudos em uma renomada universidade, a essa altura ele já passa da metade do curso de graduação e está com tantos planos na cabeça que mal consegue administrá-los todos. Em pouco tempo estará formado, trabalhando por um salário digno e dando orgulho aos seus pais e uma chance a mais aos seus irmãos.

Assim como o Zé Tonico, milhares de estudantes vêm se beneficiando do Enem e do ProUni, que parecem estar favorecendo quem realmente precisa e merece. Por tudo isso, o aniversário de uma década do Enem merece comemoração, já que ele segue firme e forte no sistema educacional brasileiro, às vezes tão manco que chega a beirar o insustentável. Merece ainda festinha com bolo, brigadeiros, balões e presentes. E o que dar de presente? O Enem é uma idéia que parece ter dado certo, é também uma questão que deveria provocar reflexões. Reflexões, aí está! Vamos embrulhá-las todas para presente. Ele vai adorar.

10 maio 2008

Os fins justificam os meios, mas os meios desconhecem os fins.

Protestos, quebra-quebras, revoluções, atos públicos, ocupações... Movimentos legítimos para reivindicação por direitos ou badernas generalizadas? Não é de hoje que a pergunta paira no ar.

Maio de 2008. Pelos corredores da universidade, cartazes anunciam debates relacionados ao quadragésimo aniversário de um evento que ficou marcado na história da sociedade. Junto com os cartazes, fotografias retratam estudantes em confronto com a polícia, ou pichando frases de efeito nos muros da cidade.

Neste mês de maio, celebram-se os 40 anos do “maio de 68”, que é como ficaram mundialmente conhecidos os confrontos ocorridos naquele ano nas ruas de Paris, surgidos inicialmente como um protesto estudantil contra o autoritarismo nas universidades (leia-se proibição de estudantes de ambos os sexos freqüentarem o mesmo dormitório) e que acabou transformando-se rapidamente em uma contestação ao governo, principalmente após a adesão dos operários da cidade ao movimento. Todo aquele barulho acabou servindo de estopim para uma série de transformações políticas e comportamentais, que afetaram profundamente a sociedades da época, com reflexos que perduram até os dias atuais.

Como se pode perceber, já não é de hoje que idéias revolucionárias entram em conflito com administrações conservadoras. O conservadorismo, genericamente falando, sempre tendeu a assumir ares pejorativos, enquanto os ideais revolucionários geralmente estiveram associados à jovialidade e ao coletivismo. Quando imaginamos episódios como o maio de 68, a primeira coisa que costuma vir à cabeça são imagens de confrontos e protestos acalorados, da juventude libertária contra os “velhotes retrógrados e caretas” que costumam estar por cima da carne seca. Mais do que questionadores, o papel dos estudantes parece ser, via de regra, o de oposição ao regime, seja ele qual for. O que se passava na cabeça dos idealizadores daquela revolução de 68, grosso modo, é o mesmo que continua incutido nos revolucionários do século 21. Ainda que o pano de fundo seja outro, o conceito continua girando em torno de uma oposição a um regime, a um sistema, a um método ou a uma simples ação com a qual não há concordância. O “ser revolucionário”, passou a estar associado diretamente à participação em protestos e outros atos impactantes, com o objetivo claro de chamar atenção para uma determinada causa.

Talvez este seja mesmo o único recurso que certas minorias, no “alto” das suas limitações, dispõem para expor suas aflições. Mas mesmo considerando a enorme dificuldade que estas classes encontram para despertar a atenção dos governantes, será que isso lhes dá o direito de, deliberadamente, causar transtornos aos demais cidadãos? Mesmo o maior simpatizante deste tipo de movimento manteria sua opinião caso se visse estagnado em uma avenida bloqueada e com sua esposa dando à luz no bando de trás do seu Fiat 147? A questão é mais complexa do que parece, e já várias vezes me flagrei refletindo sobre isso após argumentações com colegas cujas opiniões divergem das minhas.

Na verdade, o que mais perturba nessa história toda, são as dúvidas que surgem em relação ao real engajamento de parte daqueles que engrossam o caldo do efetivo nas ruas. A força dos gritos não parece corresponder às ideologias, ou mesmo ao simples conhecimento da causa reivindicada. Além dos gaiatos que encontram ali uma excelente oportunidade para escapar daquela aulinha chata de português, temos também os que atiram pedras apenas para terem historinhas para contar aos netos, ou para proclamarem orgulhosos por aí como enfrentaram (e apanharam) da polícia.

Apesar do teor dos comentários, ainda compreendo que poucas maçãs podres são capazes de estragar toda uma carga de bons frutos. Obviamente, isso só se aplica para as caixas que possuem bons frutos.
Atualização: aos finais de semana
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