27 setembro 2008

Ferramenta versus produto.

Recentemente um dos meus colegas de empresa largou o batente. Após cinco anos, avaliou sua situação e concluiu que lá fora havia mais a ser explorado, bem mais do que o seu dia-a-dia vinha lhe oferecendo. Na ocasião, ocupava um cargo de chefia e contava com estabilidade e um bom salário, mas preferiu pôr em prática um projeto pessoal, guiado pelo anseio da busca por novos horizontes. Com isso em mente, ao invés de sentar-se por mais 20 anos na mesma cadeira, sentou-se no banco da prancheta e rabiscou alguns esboços. Olhou para o papel e enxergou naqueles rabiscos algo realmente gratificante. Embalou tudo, entrou em um taxi e disse ao motorista: “para o aeroporto!”

A partir do momento em que ele nos dizia “até logo” e eu lhe prometia algum dia bater à porta na sua nova casa na Espanha, começavam a formar-se na minha cabeça algumas idéias sobre a natureza da relação de nós mesmos com o nosso trabalho, e até que ponto o vínculo que mantemos com as nossas atividades deve se sobrepor à realização de projetos pessoais. Em outras palavras, será que o dinheiro ganho com o nosso trabalho está desempenhando o seu real papel, que é meramente o de constituir um meio através do qual alcançamos nossa realização pessoal?

Se questionarmos qual a necessidade de um bom salário a alguém que ganha muito, essa pessoa provavelmente dirá que o objetivo do dinheiro é proporcionar para si e sua família uma vida digna. Com dinheiro banca-se um alto padrão de vida. Compra-se conforto, saúde, lazer e segurança. Mas será que isso representa o mesmo que uma alta qualidade de vida?

Tomando um exemplo hipotético, do Dr Euclides e do Toninho, veremos que apesar da diferença de muitas centenas de reais no salário, grosso modo ambos conquistam as mesmas coisas, apenas um percorre um caminho mais longo que o outro para tal. Dr Euclides, por exemplo, paga mensalmente uma grande soma para uma firma de segurança evitar que marginais arrombem a sua casa. Na casa do Toninho, os únicos que entram sem serem convidados são as galinhas, que sua esposa enxota à vassouradas. Dr Euclides entrega outra soma considerável a uma academia para mantê-lo razoavelmente apresentável, enquanto o Toninho, apesar de adorar uma macarronada bem servida, nunca teve problemas com a balança, já que a lida no campo se encarrega de dar destino às suas calorias. Se o Dr Euclides gasta fortunas com médicos devido a problemas respiratórios crônicos agravados pela poluição, o Toninho se limita a comprar Mertiolate, esparadrapos e um tubo de Gelol quando algum cavalo xucro eventualmente o derruba no chão. Os cavalos são do Dr Euclides, que sempre que pode, compra uma passagem de avião e vai passar alguns dias revigorantes na sua fazenda, onde o Toninho trabalha como caseiro.

Não há como negar que, para o bom gastador, dinheiro pode ser muito benéfico. Se ambos Dr Euclides e Toninho são espertos o suficiente, logo se dão conta que não há nenhum mal na aquisição de bens supérfluos, desde que estes não acabem retendo para si mais importância do que realmente merecem. Afinal, é justamente com esse objetivo que trabalhamos pelo dinheiro, pois apesar dele acabar sendo essencial, não deixa de ser um mero instrumento para alcançarmos nossos objetivos finais. O crescimento como pessoa, o acúmulo de vivências, conhecimento e realizações, ao contrário do dinheiro, nenhum assaltante é capaz de tirar de você.


"Quando a última árvore tiver caído,quando o último rio tiver secado,quando o último peixe for pescado,vocês vão entender que dinheiro não se come."

12 setembro 2008

Eu sou maior que você!

Ao chegar em casa e ligar a televisão para me distrair enquanto disfarçava a bagunça no quarto, vi que passava um filme já pela metade. Era mais um daqueles pastelões melodramático norte-americanos, um primor na arte da embromação. Acabei me prestando a sentar e acompanhar o filmeco, que falava do vôo 93 da American Airlines, um daquele que caiu durante os ataques terroristas do 11 de setembro de 2001. Esse vôo, para quem não se lembra, foi aquele último a ir ao chão, onde os passageiros, já cientes da missão suicida dos terroristas à bordo, tentaram reagir e tomar o controle da aeronave. Para ser sincero, eu estava mesmo era um tanto curioso para saber como seria a cena dos mocinhos morrendo no final, uma grande inovação, em se tratando de filme americano.

O resultado, no entanto, já era previsível: pobres famílias desamparadas, várias criancinhas de olhos azuis indagando porque o papai não ia mais voltar para casa. Era a deixa para as mães explicarem o quão cruel o mundo é, que lá do outro lado existem pessoas más que falam uma língua esquisita e matam pessoas inocentes. Tudo isso em meio a musiquinhas de efeito, lágrimas e o mesmo “God save America” de sempre. Enquanto isso, na terra de Alah, fora do alcance dos telespectadores e sem musiquinhas de efeito, um garotinho de cabelos negros e olhar penetrante pergunta por que é que uma bomba teve que cair em cima da sua casa, matando a sua mãe, enquanto seu pai era executado “meio que sem querer” pelas forças de ocupação que há anos rondam o seu país.

Enxergamos um lado, não olhamos para o outro - a mente humana é muito influenciável por imagens e emoções. Se só temos acesso a um lado da moeda, existe a tendência de encararmos essa informação como verdade absoluta. Nem sempre é fácil conduzir uma linha de pensamento sem ficarmos presos dentro dessas redomas que abafam nossa capacidade de raciocínio lógico.

Lembro que quando eu era moleque, gostava mais desses filmes. Na época, eu não percebia os sintomas sutis (ou nem tanto) da alienação e do excesso de um patriotismo (ou regionalismo) cego de quem cisma em convencer a todos de que somente a sua cultura presta, que só os representantes do seu povo são realmente espertos, coerentes e civilizados. No sul do Brasil, por exemplo, ainda existem resquícios daqueles ideais separatistas que, do alto da sua mesquinhez, teimam em ignorar a imensa riqueza formada pela diversidade cultural e pela abundância de recursos naturais, bens de uma grandeza tal que somente poderiam estar reunidos dentro de uma invejável vastidão territorial, exatamente como a do Brasil.

Um povo que tanto almeja a prosperidade precisa tomar cuidado com a disseminação de ideais tortuosos. Se um sotaque é diferente do nosso, isso não deveria ser motivo de chacota. Lembremo-nos que o falar deles é esquisito em relação ao nosso, tanto quanto o nosso é esquisito em relação ao deles. Se por um lado receamos ou até mesmo tememos os efeitos da globalização, à medida que ela extingue tradições e culturas, achatando-as todas a um mesmo plano, por outro lado participamos com nosso quinhão, ao tratarmos com escárnio qualquer tipo de cultura diferente daquela com a qual estamos habituados.
Atualização: aos finais de semana
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